G J Consultoria Empresarial e Treinamento EIRELI. Informativo Empresarial – Ano VII – N. 04 – Fevereiro/2012

OPINIÃO – CASO ELOÁ – INCIDENTE DE DESACATO – ATAVISMO DA CASA GRANDE E SENZALA

I - INTRODUÇÃO

Antes de analisar o pretenso crime de desacato praticado pela advogada de Lindemberg – caso Eloá – conveniente relembrarmos os fatos que culminaram na morte da jovem.

Lindemberg Fernandes Alves, então com 22 anos, invadiu o apartamento de sua ex-namorada Eloá Cristina Pimentel, 15, no segundo andar de um conjunto habitacional na periferia de Santo André, na Grande São Paulo, no dia 13 de outubro de 2008. Armado, ele fez reféns a ex-namorada e outros três amigos dela, que estavam reunidos para fazer um trabalho da escola.

Em mais de cem horas de tensão, Lindemberg chegou a libertar todos os amigos, mas Nayara Rodrigues acabou voltando ao cativeiro, no ponto mais polêmico da tragédia - a polícia, que trabalhava nas negociações, foi bastante criticada por ter permitido o retorno.

Em depoimento, Nayara afirmou que, após ter sido liberada, foi procurada por policiais que queriam que ela tentasse convencer Lindemberg a libertar Eloá pelo telefone. Então ela os acompanhou até o local do sequestro e foi orientada pelo rapaz ao celular a subir as escadas. Nayara disse que Lindemberg prometeu que os três desceriam juntos, mas, quando chegou à porta, viu que ele estava com a arma apontada para a cabeça de Eloá. Então, ele puxou Nayara para dentro do apartamento e não a libertou mais.

Mais tarde, policiais militares do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais) invadiram o apartamento e afirmaram que ouviram um estampido do local. Em seguida, foram ouvidos tiros. Dois deles atingiram Eloá, um na cabeça e outro na virilha, e outro atingiu o nariz de Nayara. Eloá morreu horas depois. Lindemberg foi preso.

O réu é acusado de cometer 12 crimes, entre eles homicídio duplamente qualificado por motivo torpe, tentativa de homicídio (contra Nayara Rodrigues e contra o sargento Atos Valeriano), cárcere privado e disparos de arma de fogo. Foi condenado por todos os crimes.

No interrogatório da perita Darci Aparecida Pereira Lopes, no segundo dia de julgamento do caso Eloá, a promotora Daniela Hashimoto ameaçou processar por desacato a advogada do acusado, Lindemberg Alves, Ana Lúcia Assad. A defensora sugeriu em plena sessão que a juíza deveria voltar a estudar.

Os ânimos se exaltaram durante uma discussão técnica. A defesa questionava insistentemente a diferença do número do registro da arma usada por Lindemberg, um revólver calibre 32, em documentos do processo. Aos que assistiam à cena a impressão é que a estratégia era desqualificar a documentação.

Na fala da Promotoria, a defesa começou a interferir. A juíza, então, fez um alerta. Disse a Ana Lúcia que ela já tinha tido a vez dela de fazer perguntas e que poderia voltar a se manifestar depois. A advogada alegou que estava defendendo o "princípio da verdade real" (termo jurídico segundo o qual se pode deixar questões formais de lado para mostrar ao júri fatos considerados esclarecedores). A juíza reagiu. "O princípio não existe ou não tem este nome", disse a magistrada, segundo fontes jornalísticas de maneira irônica. "Então a senhora tem que voltar a estudar", respondeu a advogada.

Um intenso burburinho na plateia foi ouvido. Antes mesmo que a juíza esboçasse qualquer reação, a promotora se antecipou e ameaçou processar a defensora de Lindemberg: "Quero alertá-la que, dentro do tribunal, a senhora pode ser responsabilizada por atitude de desacato. E, no meu entendimento, o que aconteceu aqui foi um desacato".

Apesar da confusão, o depoimento continuou. "A juíza está sendo tolerante com as atitudes da advogada porque compreende que é difícil defender o indefensável e porque ela quer que o júri seja concluído", avaliou o advogado José Beraldo, assistente da acusação.

II – DESACATO?

Abro a “internet” no sítio da UOL e deparo com a seguinte chamada: “Advogada de Lindemberg manda que juíza volte a estudar”.

No corpo da matéria, sabe-se que a promotora de justiça Daniela Hashimoto interveio e disse que Assad – advogada de Limdemberg - poderia responder por desacato se fizesse comentários como esse.

A juíza voltou atrás e acolheu a pretensão da patrona do réu.

O fato chama atenção porque o Código Penal contempla a prática do crime de desacato no artigo 331. O sujeito passivo do crime é o funcionário público, vale dizer, ele a vítima.

O escopo da análise não é estritamente jurídico, mas o que se revela por exame mais acurado do instituto do desacato.

No caso do julgamento de Limdemberg, assim como em vários incidentes, funcionários públicos, dentre os quais, por óbvio, se incluem os juízes, intimidam especialmente os advogados com a ameaça de prisão em flagrante caso entrem em rota de colisão.

A atitude do juiz é inaceitável por várias razões.

Lembra o caso de criança mimada, que, contrariada em seus interesses faz birra; no caso dos magistrados trata-se de mera exibição gratuita de poder para reforçar “quem manda”. É uma “carteirada” sem carteira, mas pela palavra.

A juíza presidente do Tribunal do Júri disse, em suma, que não existia o princípio invocado pela advogada. E o fez com uma agravante – ironia - que, por si só, mereceria reprimenda da Corregedoria do Tribunal de Justiça. Ora, por exemplo, a juíza não estava participante de um debate jurídico, em que, em boa retórica, poderia lançar ironia como argumento. Estava presidindo um tribunal cuja liberdade de uma pessoa estava em jogo. Cediço que a liberdade é o segundo maior bem de dispomos.

Nelson Rodrigues diversas feitas afirmou que somente o gênio enxerga o óbvio.

O óbvio aqui é que aqueles que interpretam consumado o crime de desacato pela advogada, ignoram plêiade de fatores.

Primeiro, ex nihilo, nihil, vale dizer, do nada provém o nada.

O pretenso desacato não foi fortuito, não derivou de mero ataque à juíza, mas proveio de um ato de indignação especialmente pelo tom irônico e provocador da juíza.

Segundo, a promiscuidade conhecida por todos que militamos no Judiciário, entre juízes e membros do Ministério Público é patente. Tomam o “sagrado” lanche juntos, as prerrogativas são iguais em ambas as carreiras e se julgam superiores aos advogados.

Sociologicamente, a explicação é singela.

O Estado sempre foi autoritário no Brasil e o povo, que o advogado representa, nunca passou de “arraia-miúda”. Lembre-se que no Brasil-Colônia apenas os “homens-bons” tinham direito ao voto; inexistia, pois, sufrágio universal já que ao povo restava acatar as normas dimanadas da plutocracia que dominou e continua a dominar o país. O critério de aferição do “homem-bom” era a posse de terras – medida da riqueza; o voto era censitário.

Terceiro, dada à promiscuidade e a inevitável necessidade de bajular a autoridade, a primeira a aventar a hipótese de desacato não foi a pretensa vítima – a juíza – mas a promotora do caso. Pelo que sabemos a juíza voltou atrás e acolheu a pretensão da advogada e jamais mencionou o suposto desacato. Ora, se a juíza voltou atrás devido à atitude firme da advogada esgarça-se o hipotético crime de desacato.

Todavia, insista-se, quem conhece rudimentos de lógica formal, sabe que houve nexo causal entre a atitude, no mínimo inconveniente da juíza e a reação humana – qualquer ser humano ficaria aturdido com o que ouviu – da advogada.

A declaração da juíza foi o gatilho, foi o fato gerador da indignação da advogada. Que diria você se ouvisse a juíza dizer o que falou? Curvar-se-ia?

O lema do governo Dilma bem poderia ser: “País subdesenvolvido; Judiciário, idem, sobretudo por não saber integrar os comandos legais em princípios, em olvidar a Constituição e se ater às normas menores - que moleque devasta a cacete (Graciliano Ramos, São Bernardo - e em harmonia com os reclamos da sociedade contemporânea.

A esta altura o leitor deve se perguntar aonde vou chegar.

Lembre-se que a vítima do desacato é o funcionário público.

Quem é o funcionário público?

O Código Penal o define: “ Art. 327 - Considera-se funcionário ou servidor público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego, serventia ou função pública. § 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública".

A finalidade do funcionário público é a de servir. Servir significa lato sensu prestar serviços. Para prestar serviços é preciso exercer o poder.

Ora, conquanto nem todo funcionário público seja eleito pelo povo, é ao povo, e mais a mais ninguém, que ele serve. Ele não existe de per se, mas – eis o ponto central – em nome do povo.

O § único do artigo 1º. da Constituição Federal preceitua que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A conclusão é elementar: O povo é o mandante; o funcionário público, o mandatário.

“Nunca antes nesse país” – obrigado Lula! – subverteu-se tanto e tão grotescamente a Constituição e os valores mais caros da Humanidade.

Assim, é o povo que deve ser protegido contra humilhações, apupos, intimidações, especialmente das autoridades policiais e judiciárias.

Inúmeras vezes, em várias audiências de que participei, presenciei lamentáveis episódios em que os juiz tripudiava os advogados e, pior, estes não repeliam o injusto gravame que sofriam por medo etc?

O juiz brasileiro não somente é tecnicamente despreparado – v. os últimos concursos – como não tem a menor noção de seu papel institucional.

País subdesenvolvido, Judiciário idem.

O desacato, no Brasil, é via de mão-única.

Somente o funcionário público é vítima.

Porém, como visto, os advogados podem ser maltratados, humilhados entre outras coisas.

A autoridade, e.g., que ameaça prender em flagrante o advogado a seu bel-prazer, não tem a menor noção que, ao assim agir, não vulnera apenas o advogado, mas o POVO, primeiro e único detentor do poder. Olvidam também que quem o colocou na magistratura foi o mesmo povo que, sadicamente, ele achincalha na figura do advogado. Aposenta-se e vai advogar.

Figure-se que o juiz não chegue ao ponto de acenar com a prisão em flagrante por desacato.

Mas não é raro que ele passa uma descompostura no advogado é que constrange todos que participam da audiência.

Não há hierarquia entre o juiz e o advogado, mas em geral o juiz age como se fosse o “dono” do advogado, que tem de se curvar à vontade do senhor – feudal ou da casa grande?

Imaginem se o juiz mandasse o mandasse o advogado voltar a estudar. Alguém, porventura, cogitaria processar o juiz por abuso de poder e, caso processado, seja julgado por um par. E a imparcialidade do outro magistrado? Óbvio que o juiz seria absolvido nesta terra de tapuias, ou melhor, não tem Fé, nem Lei, nem Rei:

"A lingua deste gentio toda pela Costa he huma: carece de tres letras, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente." Pero de Magalhães Gândavo / Tratado da terra do Brasil.

III – OUTRA REALIDADE JURÍDICA

Outro país, outro processo civilizatório, outro direito.

Examinemos o direito do estado de Nova York, nos Estados Unidos, para servir de contraponto à exposição acima.

Embora eu não seja especialista em direito norte-americano, conheço a Constituição daquele país e as emendas.

Como nos Estados Unidos as leis são diferentes em cada estado-membro, é possível se considere uma conduta passível de configurar crime no Alabama, mas que a mesma conduta não o seja no estado de Nova York.

Os estados do Norte são mais liberais e mais ricos que os do Sul. A base dos estados nortistas é a industrialização ao passo que os estados sulistas se fincaram no sistema “plantation”, cujos traços são a mão-de-obra escrava, latifúndios e monocultura de exportação.

As leis refletem o sistema sócio-político-econômico de determinada região.

Assim, o as execuções por pena de morte são mais comuns nos estados sulistas, especialmente no Texas, recordista de execuções.

No estado de Nova York, se a polícia abordar uma pessoa na rua e lhe fizer perguntas porque a julga suspeita de um crime, ela pode muito bem não só se recusar a responder (5º. Emenda Constitucional reforçada pela Miranda´s Rule), como também ofender os policiais sem que possa ser preso por cometer “contempt” (do latim contempto, us), cujo significado primário é o de desprezo.

O nome completo do crime, no estado de Nova York, em outros estados americanos, é “contempt court” – desprezo à corte ou no Brasil, desacato.

O motivo de a pessoa não ser presa em flagrante por desacato se ofender policiais, ao contrário do que ocorre aqui, talvez seja o traço distintivo entre nossa sociedade – em que a autoridade é um fim em si mesmo – e o individualismo e o liberalismo, apanágios dos Estados Unidos.

O individualismo americano atinge, de quando em quando, o paroxismo. Vide o isolacionismo arraigado no país e que postergou ao máximo o ingresso dele na II Guerra Mundial.

O bem tutelado lá quando a pessoa desborda é o direito individual, é a liberdade de expressão. Aqui, não, a sociedade, caudatária do autoritarismo, pune o cidadão para proteger o Estado.

Não deveria ser o contrário?

Os constitucionalistas pátrios – grandes teóricos – preconizam que 5º. da Constituição Federal garantem os direitos e garantis constitucionais, inclusive o de requerer a tutela jurisdicional, o que, dada à morosidade e outros fatores intrínsecos a este poder, não passa de expressão “para inglês ver”.

Como explanado, não houve desacato na conduta da advogada.

Trata-se, mutatis mutandis, de retorsão pela advogada, que consiste na resposta incontinenti a uma injúria perpetrada pela juíza que, por seu turno, injuriou, com a agravante de que o fez de forma irônica – atitude inaceitável para uma magistrada – injuriou, dizia eu, não somente a todos os presentes, mas à Magistratura e, em última análise, o povo brasileiro.

Portanto, se a advogada for mesmo processada por desacato somente pode-se atribuir à estreiteza, à miopia de nossos “intérpretes” e ao “engessamento” de nosso ordenamento jurídico, ancorado no sistema cartesiano (método dedutivo), que pretende abarcar todas as situações da vida – sempre imponderável – num sistema codificado.

Os juristas pátrios ignoram muitas coisas; uma das piores é não porem em prática a célebre lição de KARL ENGISCH: “A lei pode ser mais inteligente que seu autor, como também o intérprete pode ser mais inteligente que a lei” - Introdução ao Pensamento Jurídico, 6ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988, p. 196.

IV –ESCLARECIMENTOS

Utilizei o “caso Eloá” como mote para dissecar as mazelas do nosso sistema jurídico, que se entende como um fim em si mesmo e cujo escopo não é a realização da Justiça, mas a aplicação da lei.

No Brasil, segue-se à risca o brocardo romano Fiat Iustitia, pereat mundus (Faça-se justiça ainda que o mundo pereça).

A tese que defendo não pretende ofender ninguém.

Como Maquiavel, guardadas as devidas e as necessárias proporções, meu mister foi o de descrever os fatos como são e não como deveriam ser; não posso, pena de conivência, edulcorá-los.

José Rubens Barbosa Júnior é advogado, Procurador do Município de São Paulo e colaborador dos Boletins Informativos do GABINETE JURÍDICO – Consultoria Empresarial e Treinamento Ltda.

Fevereiro de 2012.

FONTE: Gabinete Jurídico

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